Uma
dose extra de perversidade
“Você
vai parir fogo”, disse o torturador da Polícia do Exército,
enquanto aplicava choques elétricos na vagina de Dulce Maia,
militante da VPR. Depois a estuprou. Com 29 anos, ela viu seus
cabelos embraquecerem da noite para o dia; nunca mais menstruou.
A
jornalista Rose Nogueira, presa quando amamentava o filho de 33 dias,
seviciada e violentada com os peitos ainda cheios de leite, foi
apelidada de Miss Brasil por seu torturador no Dops.
Ele
não se referia ao concurso de beleza, mas a uma vaca leiteira
premiada em uma exposição. “O torturador fazia questão de
mostrar a fotografia da vaca Miss Brasil no jornal. Dizia que eu era
uma vaca terrorista”, contou Rose à jornalista Luiza
Villaméa.
Autora do livro A
torre – o cotidiano de mulheres encarceradas pela ditadura,
Villaméa fez uma centena de entrevistas e pesquisou milhares de
documentos em arquivos durante dez anos para contar como essas
mulheres se organizavam e se relacionavam na prisão na torre
incrustada no presídio Tiradentes, em São Paulo.
Quase
todas chegaram ali traumatizadas pela tortura, muitas estupradas,
todas submetidas a uma dose extra de perversidade, um indisfarçado
ódio misógino que salta aos olhos de quem lê.
Eu estava
no meio dessa leitura, enquanto acompanhava atentamente a série cheia
de revelações da Pública sobre os 60 anos da ditadura – sim,
presidente Lula, nunca foi mais importante relembrar essa data –,
quando a notícia sobre a prisão dos novos acusados no assassinato
de Marielle Franco me fez ligar a TV às 7 da manhã no domingo
passado.
A dor e o susto estampados nos olhos da
irmã e mãe de Marielle – ministra Anielle Franco e dona Marinete
– ao tomarem conhecimento ao vivo de que o delegado Rivaldo Barbosa
foi apontado como um dos autores do crime me comoveram e trouxeram
uma estranha sensação de déjà-vu.
Sim,
eu já tinha visto aquela expressão de desamparo nos rostos de mães,
irmãs e esposas de outras vítimas de crimes cometidos por agentes
do Estado. Dos mortos em operações policiais em lugares pobres,
como a Maré de Marielle, às vítimas da ditadura
militar.
Marielle foi morta por ordem de um deputado
federal e um conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, em
um crime desde o início acobertado pelo chefe da Polícia Civil do
Rio de Janeiro, segundo a Polícia Federal (PF).
Quando é
o Estado que mata você recorre a quem?
Li o relatório de
479 páginas da PF (na íntegra na internet), a que os deputados do
Congresso Nacional disseram “não ter tido acesso” como pretexto
para postergar a
votação sobre a prisão de Chiquinho Brazão. Embora seja
consistente, apesar da dificuldade de comprovar pontos da delação
de Ronnie Lessa seis anos depois do crime, como observou meu
vizinho de coluna, Rubens Valente, fiquei com a sensação de que
faltava algo na motivação do crime.
Sim, Marielle
tinha um papel importante na contenção da expansão territorial das
milícias associada à especulação imobiliária, como diz o
relatório. Também teve participação ativa, como assessora de
Marcelo Freixo na CPI das Milícias.
E se notabilizou,
como vereadora, na fiscalização da intervenção militar na
segurança do Rio de Janeiro, quando o general Richard Nunes indicou
Rivaldo Barbosa para a chefia da polícia, uma semana antes do
crime.
Mas para muita gente, especialmente mulheres que
durante todo esse tempo pressionaram em ruas e redes para que o caso
não fosse esquecido, a condição de mulher negra, favelada,
feminista e LGBT, incansável na denúncia da violência policial e
de gênero, parece inseparável do crime que a vitimou.
Isso
não quer dizer que seja um “crime de ódio”, como tentou
justificar a polícia comandada por Rivaldo na esperança de
arrefecer o clamor popular pelo mandante. Trata-se de um homicídio
cometido por profissionais, com interesses políticos e econômicos
no ecossistema do crime do Rio, como disse o ministro Flávio
Dino.
Foi quando me lembrei de um artigo assinado
em 2019 pela doutora em comunicação social e deputada estadual
Renata Souza (PSOL-RJ), quando apenas os executores do crime eram
conhecidos, e não os mandantes. O título, “O feminicídio
político de Marielle Franco”, refere-se a um conceito desenvolvido
academicamente por ela durante o pós-doutorado na Universidade
Federal Fluminense (UFF) e pode ser aplicado a outras mulheres que
tiveram suas vozes caladas pela violência, como a juíza Patrícia
Acioli, morta por PMs, ou Dorothy Stang, executada por pistoleiros a
mando de fazendeiros no Pará.
Liguei para a deputada,
amiga de Marielle e como ela “cria da Maré”, além de chefe do
seu gabinete durante o mandato abreviado pela execução da
vereadora. Em uma conversa de meia hora, ela se declarou convencida
da realidade da trama revelada pela PF “como ponto de partida para
novas investigações”. Falou também da impossibilidade de julgar
o que é motivo para matar na cabeça de assassinos, principalmente
quando os criminosos tinham desde o início a guarida de um agente de
Estado, o delegado Rivaldo, e trouxe outras reflexões, que
compartilho aqui.
“Depois de conseguir pensar em quão
frágil era [essa estrutura de investigação do estado do Rio],
também penso o quanto o corpo da Marielle era esse corpo matável na
política, e quanto enfim é possível que essas insatisfações com
a atuação dela tenham levado ao crime. Mas acredito que não é só
isso. Há todo um conjunto de situações que colocam esse corpo
matável de uma mulher pobre, preta, LGBT. Aquela novata na política
que ousou demais, em pouco tempo, dentro de uma estrutura formatada
para eles, homens brancos, que têm a política como herança e a
violência como metodologia política. Tem as causas objetivas, mas
também as subjetivas. Acho que eles acharam ousadia demais uma
mulher como aquela desafiar de peito aberto o poderio político que
eles já tinham além da certeza da impunidade. Faz sentido dentro de
uma lógica miliciana calcada no Estado diante de um corpo matável.
É, sim, um feminicídio político”, concluiu a deputada.
Seja
nos porões da ditadura dos militares ou no “política, polícia e
crime” do Rio contemporâneo, os corpos das mulheres são
“matáveis”, “torturáveis”, “estupráveis” e continuarão
a sê-lo se deixarmos de gritar por justiça da maneira que
aprendemos a fazer com familiares, companheiros e amigos de vítimas
da ditadura que se pretende esquecer: Marielle,
presente!
Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
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